O caso do ‘ó’ com o copo

posted in: Actualidades | 0

2008-162x130Anos 70, ditadura militar e o Brasil na “Era do milagre econômico “, os milicos mandavam e desmandavam, como senhores feudais; o ministro da educação Coronel Jarbas Passarinho falava em acabar com o analfabetismo e criava o programa Mobral, Movimento Brasileiro de Alfabetização, grande projeto do momento; na rádio, tocava sem parar a música de Tom e Ravel, dois cantores populares:

“…Eu tenho as minhas mãos domáveis e uma sede de saber, então me ensina a escrever…”,

Para grande comoção pública, e todo mundo ouvia com o coração piedoso, pronto para ensinar o be-a-bá.

A tarde caía, entrando pela boca da noite. Chico Duro, João Preto, Joaquim, Toizinho da Sá Jóve, Manuelão, João Roxo, Miquelino e eu estávamos reunidos na porta da casa do Mané Barrado, matuto curtido pela vida dura do campo, caboclo velho, encurvado, barba grisalha.

A conversa ia ganhando terreno, e eu, de repente, comecei a pensar como seria bom ensinar o pessoal a escrever ou pelo menos a assinar o nome, que dava direito ao título de eleitor, para poder votar (se bem que não para presidente, porque nessa matéria só votavam os militares)

E a conversa prosseguia em toada de boiada, aboiando os assuntos, Mané Barrado agachado pitando o cigarrinho de fumo goiano, coisa boa, coisa de bom gosto, cheirinho bom de fumo queimando no ar. Assentei bem o momento e comecei a conversa, falando pausadamente, explicando. Minha gente, temos que construir uma escola, levantamos uma casinha praquelas bandas, o governo está dando o material, não quer o povo analfabeto, quer o povão todo letrado, eu vou na cidade e falo com o prefeito e ele me dá o material, quadro negro, giz, livros, lápis, cadernos.

Então Mané Barrado se aproxima, olha nos meus olhos com jeito solene, e me fala:

— Eu sei fazer um “ó” com o copo…

2007 - Poema de Despedida
2007 – Poema de Despedida

 

Olhei pro matuto e vi dignidade naqueles olhos, fiquei matutando, sentado no toco de jacarandá, e olhava Mané Barrado agachado na minha frente, esperando pelas minhas palavras. Então mirei o Mané Barrado nos olhos e disse:

— Então, homem, faz o “ó” com o copo!

Mané Barrado virou a cara na direção da cozinha, espichou os lábios e, soprando forte, gritou pra filha:

— Maria das Dores, traz o copo, minha filha.

Lá de dentro escuto a vozinha doce e infantil, “já vai pai…”

E lá vem Maria das Dores, linda caboclinha, aos pulinhos, contente, enxugando o copo na barra do vestidinho. Era o único copo daquela casa, copo pra Mané Barrado beber a Januária, pinga boa. Mané Barrado adorava espiar a luz refletida no copo, pegou o copo de vidro e olhou contra o restinho de sol da tarde, depois emborcou no chão, pegou um carvão na fogueira ao lado e, com sacrifício, começou a riscar em volta do copo, as mãos trêmulas, incertas, tateando, tentando segurar o carvão com imensa dificuldade, o seu “ó” tomando forma. A caboclada juntou em volta, espiando admirada. Após algum tempo, Mané Barrado retira o copo do chão, vê a letra “ó” de sua autoria e olha para mim com orgulho e triunfo.

Aquietei as minhas vistas no desenho daquele homem, na mensagem, e fiquei pensando: este caboclo nunca teve um lápis na mão, nunca teve uma folha de papel nem instrução. Levantei-me com solenidade, olhei-o de novo e disse-lhe:

2007-Festa Brava - 140x90 - Acrílico sobre Tela
2007 – Festa Brava

— Olha, Mané Barrado, tu sabe fazer um “ó” com o copo, é um patrimônio teu, ninguém te tira este direito. Tu quando morrer vai ser enterrado com este patrimônio…

Vi que ficou emocionado , vi o quanto ele se sentiu feliz. E como foi bom eu lhe ter falado dessa forma. O tempo passa, passam as nuvens, o carcará passa, o jaburu, passa a passarada pelas bandas do céu, como a minha vida também passa e assim, cumprindo a sina do destino, fui morar no Rio de Janeiro, depois de uma mão cheia de tempo, trabalhando em agências de publicidade.

Trabalhava duro e cada dia mais, querendo aprender; usava a ilustração da publicidade apenas para desenvolver a minha pintura e pintava com paixã

o; à medida que evoluía na pintura eu desprezava cada vez mais a ilustração publicitária; ia ganhando os meus cobres e torrava tudo em material de pintura e livros, guardando um pouco na poupança, para os dias de vacas magras.

Mas o novo governo civil do Brasil, em meio a uma crise econômica, tomou uma decisão inesperada e bloqueou a poupança dos cidadãos, na tradição autoritária, deixando-me sem o meu suado dinheirinho. Fiquei com um único patrimônio, eu mesmo, juntei as minhas coisas e vim para Lisboa como pude.

Cheguei trazendo apenas o meu “ó” com o copo, porque este patrimônio, o nosso saber, como disse daquela vez ao Mané Barrado, ninguém nos tira. Nada vale mais do que fazer um “ó” com o copo.

A arte é um eterno aprendizado e aperfeiçoamento espiritual.

Saulo Silveira