Texto de Geraldo Edson de Andrade,
Escritor e Professor de História da Arte / Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Presidente de Honra da Associação Brasileira de Criticos de Arte / AICA
Um pintor brasileiro que conquistou seu lugar em Portugal. Assim poderíamos definir a trajetória de Saulo Silveira, artista nascido no estado de Minas Gerais, um dos mais ricos e diversificados estados brasileiros, onde convivem na mesma paisagem de montanhas e riquezas minerais, a herança barroca dos colonizadores portugueses e a criação atávica do seu povo. Saulo, após estágio bastante promissor no Rio de Janeiro, foi fazer a Europa a partir de Portugal, ou mais precisamente, de Lisboa. A recepção foi a melhor possível.
Pois é este pintor, dono de vontade férrea e com garra suficiente para atingir ao que realmente deseja, o que mais caracteriza sua pintura. Ao deixar sua cidade natal, João Pinheiro, no interior do Estado de Minas Gerais, seu objetivo já estava definido. Com vocação nata para o desenho desde criança, e bastante audacioso no que diz respeito ao seu talento, enfrentou o Rio de Janeiro de maneira decisiva. Justamente com Sâo Paulo, o Rio sempre exerceu enorme fascínio entre os artistas regionais,ou sejam, aqueles atuantes fora do seu eixo, pois foi uma cidade cantada em prosa e verso pelos nossos mais ilustres vates. Um cidade, portanto, que respirava cultura e com a vantagem de projetar o artista Brasil a fora.
Depois, o Rio de Janeiro foi sucessivamente a capital da Colônia, a sede do Reinado e do Império, bem como abrigou a República desde a sua proclamação até a transferência da Capital Federal para Brasília, em 1960, um dos grandes empreendimentos do também mineiro, o presidente Juscelino Kubitschek, que contou com o talento do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer, dois nomes de indiscutível trânsito internacional.
No Rio de Janeiro, Saulo Silveira transformou-se num excelente profissional do desenho publicitário, sendo disputado pelas mais importantes agências do país.O sucesso nessa área, porém, serviu apenas como trampolim para vôos mais ambiciosos, qual seja a pintura plena.O veículo que utilizou foram os salões de arte, certames nacionais que se realizam anualmente em várias regiões do Brasil.
Foi num desses salões, o 5° Salão Brasileiro de Artes Plásticas, patrocinado pela Fundação Mokiti Okada, realizado no final dos anos 80 na cidade de São Paulo, a mais industrializada das nossas urbes, que como crítico de arte, integrante da comissão julgadora do referido certame, vi pela primeira vez a pintura de Saulo Silveira.
Impressionou-me sobretudo a sua segurança como pintor numa linguagem como o abstracionismo, levando-se em conta que, no Brasil, há um verdadeiro celeiro de excelentes pintores abstratos, apesar de a figura ainda ser um dos esteios da nossa arte desde os pioneiros anos de sua formação. Ressalte-se que a contemporaneidade da arte brasileira data de 1951 quando foi realizada a Primeira Bienal Internacional de São Paulo, com a presença significativa de consagrados artistas modernos e de importantes críticos de arte, como Herbert Read, Lionello Venturi e outros.
Antes desse evento, a arte brasileira, apesar da realização da Semana de Arte Moderna ter sido fato marcante em 1922, ainda sofria dos ranços acadêmicos de uma geração que teimava em não sair de cena. A herança barroca ainda era forte e a figuração acadêmica quase uma forma de representar a cultura do país. Havia o trabalho pioneiro de uns tantos nomes, dos quais se sobressaíam Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Guignard, Cícero Dias, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, dentre muitos outros.
A bienal paulista, portanto, teve entre outros méritos o de introduzir entre os artistas brasileiros novas e fascinantes linguagens contemporâneas, como o concretismo desenvolvido pelo suíço Max Bill, justamente um dos premiados naquela lª Bienal Internacional. Lembre-se ainda que o mundo estava recém-saído de uma guerra mundial cujas conseqüências são por demais conhecidas, não só na economia européia como também na arte. A tal ponto que alguns artistas de fama, como a pintora Maria Helena Vieira da Silva e seu Mário, Arpad Szenes, também pintor, o gravador Axel Leskoschek, André Lhote, dentre outros, passaram longa temporada no Rio de Janeiro fugindo da crise na Europa, quando aproveitaram para entrar em contato com a classe artística local e ministraram cursos de muita repercussão nos anos 40.
Pintores brasileiros já tinham direcionado seu trabalho para o não figurativo, como o pernambucano Cícero Dias, em 1945, o romeno Sanson Flexor e o cearense Antônio Bandeira. As tentativas da criação de uma arte concreta brasileira foram conceituadas por jovens pintores radicados em São Paulo e no Rio de Janeiro, com o néo-concretismo, mas o l° Salão de Arte Abstrata no Brasil só seria inaugurado oficialmente em 1953, no qual emergiram nomes como Fayga Ostrowe, Ivan Serpa. Décio Viera, Volpi e muitos outros.
Voltando a Saulo Silveira, seu trabalho se destacava naquele salão realizado em São Paulo, em cuja comissão julgadora figuravam, além da minha pessoa, também os pintores nipo-brasileiro Manabu Mabe, Wakabayashi, os críticos Nelson Aguilar, Olney Krüse e Marc Berkowitz, pela maneira pessoal com que captava formas de extrema espontaneidade integradas ao colorido forte, vibrante, uma pintura que respirava sua identidade cultural mineiro-brasileira.
Infelizmente não chegou à primeira premiação mas conquistou uma honrosa terceira colocação. Seus trabalhos foram selecionados para uma grande exposição que, inaugurada em São Paulo, foi posteriormente montada no Rio de Janeiro.
Durante certo período, Saulo Silveira faz da não figuração sua linguagem principal. Foram telas de grandes dimensões nas quais uma determinada cor era o motivo a ser decantado nas suas diversas nuanças, com excelente textura, na qual sobressaíam as fortes pincelas gestuais do autor. Com essas pinturas, com as quais participou de outros salões de arte e expôs em algumas mostras coletivas, que Saulo Silveira chegou a Lisboa.
Não resta dúvida, Portugal foi responsável pela grande reviravolta na carreira do pintor brasileiro. Em contato com a cultura luso-européia, ainda vivendo profissionalmente do desenho publicitário, Saulo Silveira conscientizou-se de que a pintura era de fato a sua vocação mais premente. Ainda timidamente, expôs em algumas galerias lisboetas e sua pintura abstrata, de composição ousada, boa feitura, com cores fortes, vibrantes, começou a interessar galeristas e público.
Como todo artista, Saulo Silveira quer mais, muito mais. Sua etapa artística seguinte foi conseguir a junção entre o abstracionismo e a figura. Proposta ambiciosa sem dúvida. Nela, muitos artistas famosos sucumbiram. Dono de sólida técnica, em que emprega materiais diversos e pinceladas de lúdico gestualismo, o artista brasileiro deu vazão à sua tendência de pintar telas de enormes dimensões, obtendo uma fascinante combinação do abstrato com a figuração, muitas vezes apenas sugerida pelo vigor do seu desenho.
Desenhista Saulo Silveira sempre foi. Um desenhista nato, autodidata, que foi aperfeiçoando a técnica ao longo de sua passagem pela publicidade. A facilidade com que percorre as linhas da composição eas integra no gestual das pinceladas é o que mais fascina nas suas atuais pinturas.
Nada é gratuito em suas telas. Ao contrário, Saulo é um pintor racional. Às vezes, ao meio da abstração, ícones populares, como o poeta Fernando Pessoa, por exemplo, surgem não como motivo e, sim, como valorização do desenho, ou seja, das linhas, em contraponto às formas coloridas da composição plástica. Também não é à toa que cavalos selvagens, em cavalgada, interrompam o abstrato da proposta para se impor imponentes no quadrilátero do quadro, como a refletir na tela as trilhas de sua terra, tão impregnadas de fantástico como as descrições extraordinárias do universo das Minas Gerais do seu maior cantador, o grande escritor Guimarães Rosa.
O que faz uma pintura uma obra de arte é a sinceridade do seu criador com o tema que desenvolve. No caso de Saulo Silveira, a simbiose de linguagens lhes proporciona fincar uma pincelada no seu interior mineira e expandir pelo mundo seu vocabulário plástico com a força telúrica de sua pintura. Mais sincero em sua criação, impossível.
GERALDO EDSON DE ANDRADE
Escritor e Professor de História da Arte / Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Presidente de Honra da Associação Brasileira de Criticos de Arte / AICA